domingo, 29 de dezembro de 2013

Masculin/Masculin: nudez e violência no Musée d´Orsay


Por Carla Fernanda da Silva/ Sally Satler




Masculin/Masculin[1] nos traz em seus folhetos e releases a promessa de ser a segunda exposição de nudez masculina em Museus, diferentemente da nudez feminina, sempre presente. Porém, se pensarmos nos nus masculinos greco-romanos e da renascença, presentes nas ruas e museus italianos e, também em outros museus como o Louvre, questionamos esta afirmação. O diferencial da exposição seria a reunião de diversas obras sobre o nu masculino, com obras do próprio Musée d’Orsay e emprestadas de outros museus e acervos particulares.  

Para além das belas obras de nu fomos surpreendidas também pela recorrente relação da nudez com a violência, mostrando a representação do erótico masculino intimamente relacionado à guerra. Nesta exposição, além de serem explorados muitos aspectos e significados do nu masculino, alguns dos artistas presentes recontextualizaram o nu heróico a partir de suas épocas e realidades. O objetivo foi claramente estabelecer um diálogo entre as diferentes fases da história a partir do olhar contemporâneo.

Numa referência à obra ‘A Origem do Mundo’, de Gustave Courbet (1866), a artista Courtesy Orlan retratou ‘ A Origem da Guerra’ (1989), destacando um falo ereto, presente no final da exposição, junto às representações da homossexualidade masculina, deslocada, em nossa leitura, por seu significado crítico e reflexivo em relação à história mundial, e não exatamente à erótica homossexual. Esta fotografia nos possibilitou algumas reflexões sobre a exposição e a história do nu masculino, que desde a Grécia antiga, principalmente na estatuária, tem a representação do homem em batalha; ou seja, a construção da virilidade pela violência.

L'Origine de la guerre by ORLAN at FIAC 2012, Paris

Esta obra nos remeteu também uma incômoda continuidade discursiva em que contextos e guerras mudam, mas a representação do homem em batalha permanece: soldados-meninos, reféns do discurso de poder dos ‘senhores da guerra’ que prometem glória eterna a ingênuos Aquiles contemporâneos. A crítica a tal discurso se mostrou mordaz na fotografia do artista David LaChapelle, onde, no paraíso prometido, um belo e jovem muçulmano é amarrado como Gulliver por 72 virgens, representadas por barbies em burcas coloridas; não mulheres, mas bonecas seriadas e vazias, como as promessas dos líderes religiosos e políticos que levaram e ainda levam muitos muçulmanos à guerra e, muitas vezes, ao suicídio como homens-bombas. A nudez e a sensualidade do jovem árabe são provocativas, tanto por ser a antítese dos corpos cobertos e os tabus em relação à sexualidade do mundo muçulmano, quanto pela certeza de que apenas uma morte violenta fará que este homem alcance o seu paraíso prometido.

 
Would-Be Martyr and 72 Virgins (2008). David LaChapelle

Após sair do Musée d’Orsay, atravessamos o Jardin des Tuileries com suas árvores desfolhadas à espera da neve, oferecendo-nos uma paisagem lúgubre como a nossa incômoda reflexão sobre a exposição Masculin/Masculin e a associação perene entre o erótico masculino e a violência. Courtesy Orlan é precisa na reflexão que expõe em sua foto, mesmo assim as pessoas continuam a chocar-se diante do falo ereto e de sua promessa de prazer, ao invés de pensar sobre a provocação filosófica contida no título ‘A Origem da Guerra’, na manipulação do desejo de jovens homens para que velhos homens satisfaçam seu desejo de poder e riqueza.

"La douche. Apres la bataille".
Russian artist Alexendre Alexandrovitch Deineka

Ao finalizarmos este texto, questionamo-nos como seria uma exposição do nu masculino em que o apelo à guerra e ao herói em batalha fossem excluídos, em que a virilidade não estivesse relacionada à violência – que tantos problemas causam –, mas  sim um erótico com outras referências, em que o desejo e o corpo masculino fossem representados no simples cotidiano mundano da busca do homem por si mesmo, como nas obras de Paul Cézanne, Schiller, Cadmus, entre outros.


domingo, 1 de dezembro de 2013

O estranho ‘causo’ da igreja abandonada


Foto: reprodução

Um domingo desses saí para um pedal com algumas amigas, partindo de Blumenau para Indaial, na região do Encano. É um lugar lindo, estrada de chão, muita área verde com aquelas ‘casas de vó’, ótimo para pedaladas tranquilas e paradas para contemplar e fotografar.  

Num desses bate-papos o assunto foi uma igreja no Encano, abandonada no meio de uma imensa área verde, que desperta a curiosidade de muitos, pois há poucos metros foi construída outra igreja, nem tão maior, e muito mais sem graça que esta antiga igreja abandonada.

Logo uma amiga me confidenciou o mistério, contado a ela por um conhecido que soube através de seus parentes que moravam na região.

“Guria, tu não sabes a história dessa igreja? Chega a me dar arrepios quando passo por ela, uma coisa ruim” – me confidenciou com aquela expressão assustada. “Foi na década de 40, parece que o padre engravidou uma das moças da comunidade, que era noiva de um rapaz daqui. Quando apareceu a barriga, ela teve que contar tudo para o noivo”.

“E o que aconteceu?” – Perguntei.

“O noivo, enfurecido, entrou na igreja e matou o padre e a noiva, depois se matou com um revólver.” – E como quem comenta sobre o prato do almoço, continuou. – “O túmulo do padre fica bem ao lado da igreja”.

“Mas isso é verdade mesmo?”

“Não sei, os antigos daqui só dizem que a igreja foi abandonada porque compensava fazer outra nova ao invés de reformá-la. Mas um amigo entrou na igreja para fotografar, e disse que tudo parece estar intacto, não havia nada que indicasse risco de desabamento.”

Esta semana passei pela igreja novamente e senti um calafrio ao lembrar do suposto assassinato e suicídio que aconteceu lá dentro. Mas estou criando coragem para entrar nessa igreja e investigar os seus mistérios... Quem sabe?

Aos nossos vizinhos de Indaial, eu pergunto: esse ‘causo’ é ou não uma lenda?

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

O dia em que os negros orixás chegaram à casa da Edith Gaertner

Por Sally Satler / Carla Fernanda da Silva


Foto: Sally Satler

Foi na segunda (18/11/2013), início da noite. Atraída pelo som de pandeiros eu vi, dentro da casa de Edith Gaertner, os negros orixás com suas vestes. As imagens de Congás, do pai-de-santo e ekédjis, de caboclos, pretos-velhos, oguns e iemanjá espalharam-se pelo Museu da Família Colonial.

No quintal, corpos negros jogavam capoeira, animados por músicas negras e berimbaus. Dava para sentir as entidades, negros e negras que já viveram em Blumenau, foram tantos e tantas, invisíveis aos olhos da história.

Ao meu lado, eu vi e ouvi a negra Bertilha[i], falando para Avandié[ii]:

“O nosso dia chegou, demorou demais, mas chegou. Teve que ser de mansinho e sutil. Muitos que aqui estão não conhecem nossa história, porque não nos deixaram contar”.

“Vamos gritar pra eles ouvirem, então!” – disparou Avandié, com o jornal “The Colored” em punho, bem vestido, com seu terno impecável e sapatos lustrados.

“Te assossega, homi. Senão eles se assustam! É bem devagar que eles saberão. Vamos assoprar no ouvido dessas pessoas que estamos felizes e aqui queremos ficar, pois também é o nosso lugar ”.

E ao som dos pandeiros e berimbaus as pessoas começaram, timidamente, a cantar:

Foge o nêgo sinhá
Oiá iá iá ía
Traz o nêgo sinhá
Paranauê, paranauê paraná
Paranauê, paranauê paraná

Abro e fecho os olhos, quase sem me acreditar ao ver negros corpos em sua dança mágica neste jardim, há tanto tempo colonizado. Hipnotizada pelo ritmo dos corpos e da música, sinto que ainda falta muito para conhecermos a história e as memórias daqueles negros que viveram/vivem e sofreram/sofrem aqui em Blumenau.

Com a palavra, os nossos historiadores!




[i] Bertilha da Rosa faleceu em 1986, atropelada por um ônibus em frente ao Corpo de Bombeiros de Blumenau. Pouco sabemos de sua história, apenas que em algum momento de sua vida enlouqueceu, e entre os internamentos na antiga Colônia Santana, perambulava pelas ruas de Blumenau. Nunca caminhava nas calçadas, sempre nas sarjetas das ruas, falando sozinha e com uma pedra na mão, como quem tem medo da sociedade onde vive e dela procura se defender. Ela também é personagem recorrente nas obras do escritor afroblumenauense José Endoença Martins.

[ii] Avandié foi um dos principais líderes negros da região, criou em Blumenau a UCHIC – União Catarinense dos Homens de Cor, em 1962. A UCHIC ficou ativa até os anos 1980, promovendo congressos, campanhas educacionais, palestras e concursos de beleza. Também publicou o jornal “The Colored”, em edições que contavam sobre o cotidiano dos negros no continente africano.  

* Esta crônica foi publicada no Portal Desacato, de Florianópolis e no Portal Blumenews, de Blumenau.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Vamos ouvir nossos muros!


Quando o portal ‘catraca livre’ escreveu há alguns meses que os muros falam e deveríamos ouvi-los, despertou-me a curiosidade. Que muros são estes, afinal?

Resolvi prestar atenção nos muros de Blumenau e a primeira coisa que percebi é que muitos dos muros que lembrei que tinha alguns escritos foram limpos, numa campanha de higienização e esquecimento das reivindicações de tantos blumenauenses. Enquanto isso, a poluição visual das marcas publicitárias nas cidades é normalizada, bem longe de ser entendida como ato de vandalismo.

Uma inscrição no muro nos interpela e às vezes exige uma resposta, podendo nos convocar também a uma autocrítica. Como já alertou a filósofa Márcia Tiburi, a revolta da sociedade contra a pichação/inscrição advém do ideal de limpeza estética, da brancura ou do liso dos muros, numa “sacralização que faz da pichação o demônio”, dificultando assim outras leituras. O grito impresso nos muros também pode ser “a irrupção do insuportável”, numa “tão assustada quanto autoritária sociedade civil analfabeta” (politicamente analfabeta).

Fazendo uma incursão por algumas ruas de Blumenau, fotografei os escritos e também busquei imagens já registradas por outras pessoas. O resultado está aí: os muros da cidade nos dizem muito. Vamos ouvi-los!


(Rua Max Hering)

Essa frase desalinhada, talvez por ter sido escrita às pressas, nos convoca a pensar na forma que estamos (sobre)vivendo: a rotina que nos é imposta pelo sistema e que aceitamos servilmente: produzir para consumir. Numa cidade que ainda acredita ‘que o trabalho dignifica o homem’, faz-nos refletir sobre as imposições do mundo do capital que dia após dia mortifica o ser humano na sua rotina trabalho-casa-trabalho e o silencia em doses diárias de TV e fluoxetina. E você, vive? Vive o lazer, a arte e cultura de sua cidade? Aproveita suas praças e ruas? Tem seus momentos de lazer com a família num calmo passeio pelos parques? Consegue ter o seu tempo para ir a uma apresentação musical ou teatral? Já levou seus filhos nos museus da cidade? Qual foi o último livro que leu e perdeu-se no mundo de fantasia e reflexões? Ou você apenas sobrevive para manter o Sistema?



(Rua Heinrich Hosang)

Já escrevi muito sobre como pedalar mudou minha vida. O prazer do vento no rosto, sentir na pele a memória da infância e no presente a liberdade. Sentir que naquele momento em que você está pedalando: o tempo, a vida, os pensamentos são apenas seus; é um instante de encontro consigo. A possibilidade de redescobrir a cidade, exatamente como quando saí de bicicleta para tirar as fotos que agora ilustram este texto. Encontrando os pequenos detalhes das ruas, a bicicleta nos devolve o direito à cidade, o prazer de contemplar uma pequena flor ou um detalhe despercebido da arquitetura, revivendo um cotidiano que a rotina de trabalho nos surrupiou. Nesta imagem há uma convocação à simplicidade da vida: andar de bicicleta e amar.


(Rua Heinrich Hosang)

Esta frase nos convoca a pensar como um grande evento (copa do mundo) está influenciando diretamente na vida de comunidades carentes, que pouco a pouco estão sendo removidas compulsoriamente de seus lares (como aconteceu com a aldeia maracanã e outras localidades) - fruto de especulação imobiliária disfarçada de melhorias para as cidades, tudo com respaldo estatal. Por que a vida, a dignidade humana, vale menos que o capital voraz de empreendimentos imobiliários ou um evento de copa do mundo? Vale lembrar que os inúmeros conflitos vivenciados no Rio de Janeiro é reflexo direto dos gastos excessivos com a copa, ao mesmo tempo em que a população continua andando em transportes públicos deficitários e vergonhosos, os professores continuam com salários baixíssimos e as escolas em situações precárias. E, ainda, temos o caso do servente de pedreiro Amarildo, desaparecido após uma sessão de tortura praticada por policiais da UPP. E os políticos? Bom, Sérgio Cabral continua morando muito bem no Leblon.





Talvez esse seja o mais difícil de analisarmos num primeiro olhar, dada a complexidade filosófica do mesmo. Aqui os autores fazem uma defesa da vida animal, ao mesmo tempo em que condenam as experiências de laboratório com animais não-humanos, e também defendem a alimentação vegetariana, levando em consideração todo o processo de violência que os animais são submetidos em fazendas, granjas e etc., para sustentar a alimentação humana com base na carne. O preconceito de espécie a que se referem é o fato de humanos considerarem os animais não-humanos inferiores e com base nisso, infligir-lhes dor e sofrimento.


(Rua Antônio da Veiga)

A frase e o desenho trazem uma crítica direta à sociedade de consumo, mostrando a cegueira do indivíduo pelo desejo de consumir objetos e marcas. A pessoa que sobrevive, como naquela primeira pichação, é também aquela que consome e trabalha para manter o seu consumo. Todo este ciclo conduz unicamente ao bem-estar de poucos, donos das grandes empresas e políticos corruptos. Para além do consumismo, o estêncil exorta para buscar nas relações e nos pequenos prazeres cotidianos o Valor do bem viver.


(Rua Antônio da Veiga - passarela)

Esta frase, grafada na passarela da FURB, traz uma convocação à necessidade de pensar além do senso comum, além do que nos é transmitido pela mídia de massa. Como no Brasil já se passaram décadas de informação sem reflexão, parece que perdemos a capacidade de pensar com a própria mente, andar com as próprias pernas e enxergar além do que nos é transmitido pela tela da TV.


Muro da FURB: novamente a reflexão sobre o quanto
é importante pensar além do capital.


(Muro da FURB)

Essa outra imagem mostra-nos uma crítica à mercantilização do ensino e do saber, que implica invariavelmente na impossibilidade de pensar além. O conhecimento tornou-se ‘moeda’ especialmente em países em desenvolvimento, como o Brasil, e o ensino superior e médio são cada vez mais ditados pelos padrões de qualidade exigidos pelo mercado de trabalho, cujo objetivo é a formação em nível técnico. O ensino a serviço do capital e das leis de mercado nos impossibilita o desenvolvimento da criticidade, o crescimento humano, pessoal, ético e ir além do senso comum.

(Rua Timbó)

Da Europa temos tido notícias constantes do retorno do nazismo, tristes conceitos que achávamos debatidos e para sempre excluídos como possibilidade política, mas que infelizmente sempre retornam com atitudes fascistas e comentários saudosistas. Aqui o muro relembra o terrível erro do passado, enquanto em páginas de papel e em mensagens virtuais, ou mesmo em cédulas de votos, tentam acordar o antigo ideário de exclusão.


(Rua Timbó)

Aqui nesta mensagem, faz-se uma apologia à perda de juízo: ousar mais, sair do que nos é ditado como ‘politicamente correto’, ‘padrão’, a fim de tornar a vida mais alegre e com algum sentido.


(Rua Timbó)

A crítica à mídia de massa e a monopolização dos meios de comunicação nunca foi tão evidente como na era de redes sociais. Esse desenho é dirigido especificamente à rede globo, que já distorceu muitos fatos na história - apoiou a ditadura e agora pediu desculpas (como estratégia de marketing) – e continua fazendo o mesmo, como nos manifestos/protestos de 2013.

Praça Dr. Blumenau: protestando por mudança.


(Rua das Palmeiras)

No muro que fica bem ao lado da Câmara de Vereadores, podemos ver a reivindicação pelo passe livre, bandeira sustentada pela necessidade de mudança no direcionamento dos investimentos públicos (gasta-se milhões/bilhões em pontes, viadutos e rodovias, mas não se investe em transporte coletivo gratuito e de qualidade, que a curto e médio prazo trariam resultados mais eficientes).



(Centro. foto: Marcos Boeira/divulgação)

Essa imagem eu trouxe para o texto por ser bastante significativa pra Blumenau, que desde a desativação das lombadas eletrônicas e redutores de velocidade vem apresentando índices alarmantes de acidentes e vítimas no trânsito. O carro atravessando um muro de Blumenau nos escancara o quanto as pessoas estão impacientes e violentas no trânsito caótico tomado por carros. Mesmo assim, não existem investimentos reais em mobilidade urbana alternativa e na construção de uma cidade para as pessoas.


Muro da FURB: uma opinião.

Muro da FURB. Resistir, sempre!

Av. Martin Luther (foto: Eduardo Abel)

Numa intervenção intitulada “Mais arte, por favor!”, artistas de Blumenau pintavam um muro abandonado, sujo e desgastado da Av. Martin Luther, quando foram interpelados pela polícia e um deles foi autuado. Isso porque os motoristas que ligaram para a PM, os denunciando como ‘vândalos’, foram treinados midiaticamente para isso: a denunciar tudo, também a arte, a escrita... a reflexão e a crítica.


Rua São Paulo, autor desconhecido).
Eu preciso comentar esta?

Para finalizar, façamos os seguintes questionamentos: Neste mundo, quem ganha e quem perde com a higienização e o silenciamento dos muros? A quem interessa qualificar todas as pichações como vandalismo e a poluição visual das marcas publicitárias como normal e legítima? 


* Esse artigo foi publicado no Portal Desacato, de Florianópolis e no Portal Blumenews, de Blumenau.

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

OPINIÃO: A crítica libertada


Uma paródia à OPINIÃO DA RBS:  “A crítica sufocada”, 
publicada no SANTA de 31/10/2013*

O governo argentino ganhou muito na luta contra o monopólio da mídia ao enquadrar o Grupo Clarín na chamada Lei de Meios, agora com o aval da Suprema Corte do país. Na legítima pretensão de democratizar os meios de comunicação, a legislação estrutura e fortalece a liberdade de expressão, eis que o principal grupo do país que detém hoje o monopólio da comunicação passará a ter que disputar e aceitar que outras empresas de comunicação tenham o direito de (in)formar opinião, tanto a favor, como contra o governo e interesses da Casa Rosada.

Esse avanço segue a lógica de regimes que desejam conviver com a liberdade de expressão. Por isso, a situação argentina não pode ser vinculada num contexto de democracias autoritárias, seja de qualquer país do mundo, ainda que meios de comunicação monopolistas utilizem de artifícios falaciosos para ludibriar e vender essa notícia como golpe. A concorrência do setor na Argentina (como no Brasil) tem sido alcançada pelas novas mídias virtuais e tentam desafiar modelos consagrados, mas encontram dificuldades financeiras e sofrem com falta de estrutura para produzir e transmitir informação, situação bem diferente das empresas que detém o monopólio da comunicação.

O grupo Clarín, numa tentativa desesperada, avalia recorrer a cortes internacionais como último recurso para manter o seu monopólio. A tentativa de democratizar a imprensa e os meios de comunicação certamente vai provocar prejuízos econômicos a grupos empresariais monopolistas como esse, mas garante ao povo o acesso à informação de todas as vertentes políticas e garante a todas as mídias, inclusive virtuais, a sobrevivência e liberdade de atuação em pé de igualdade com quem hoje detém monopólio. Isso deveria acontecer no Brasil também.




Esse artigo foi publicado no Portal Desacato, de Florianópolis e no Portal Blumenews, de Blumenau.

sábado, 26 de outubro de 2013

Pedala Gaspar!


Foto: Jornal Metas, de Gaspar.
Os benefícios da bicicleta são indiscutíveis, tanto para o cidadão, quanto para a cidade. Pessoas adoecem porque comem mal e não se exercitam. Andar de bicicleta previne doenças, instiga alimentação saudável e reduz gastos com saúde pública. Também reduz o trânsito e a necessidade desenfreada de investimento público em obras de ampliação e abertura de novas vias, além mitigar a poluição sonora e do ar, contribuindo para o bem-estar de todos.

O que citei acima não é novidade para ninguém. Estranho é que essas palavras tenham que ser repetidas tantas e tantas vezes. Mas esta fórmula não é o verdadeiro segredo da paixão pela ‘magrela’. Como todo caso de amor, cada um tem sua história, posso falar da minha com intimidade, mas nas confidências entre ciclistas sei que muitos fatos que se repetem.

O primeiro prazer é o vento no rosto, sentir na pele a memória da infância e no presente a liberdade. Sentir que naquele momento em que você está pedalando: o tempo, a vida, os pensamentos são apenas seus; é um instante de encontro consigo. O segundo prazer é redescobrir sua cidade ou outras cidades por onde for andar. O carro, como uma prisão, faz-nos esquecer os pequenos detalhes da rua onde passamos a infância, o caminho da escola que percorremos todos os dias. A bicicleta nos devolve o direito à cidade, o prazer de contemplar uma pequena flor ou um detalhe despercebido da arquitetura, ou ainda, o cotidiano de nossos vizinhos ou daqueles que vivem no campo, o cuidado com a horta, com o gado, etc. Simplicidades do cotidiano que a rotina de trabalho nos surrupiou.

As amizades são o terceiro grande prazer! Depois de um tempo de pedal, você perceberá que as amizades em torno da bike são diferentes, pois muitos deles tendem a ter um posicionamento sobre políticas públicas para a mobilidade urbana e o bem viver de todos. O cuidado com o corpo e a alimentação são motivados pelo ideal de uma vida mais saudável e não por modismos ou pressões para ter um corpo idealizado pelo mercado. Andar de bike não tem a tortura do fitness, é um estilo de vida que idealiza o bem-estar pessoal, o prazer do reencontro com a natureza e com os amigos.

Quer dizer, o incentivo ao uso da bike no cotidiano torna os cidadãos mais felizes. Mas para isso, o incentivo ao uso da bicicleta precisa ser pensado e implementado como política pública municipal, com criatividade para otimizar os investimentos que certamente vão ter retorno garantido a curto e médio prazo. Precisamos criar um sistema de ciclovias interligadas aos bairros, também com rotas escolares. Gaspar tem um território imenso para implementar ciclorrotas, que muito contribuirão para o lazer da população da cidade.

Andar de bicicleta humaniza os espaços urbanos e contribui para a qualidade de vida. Carros são ilhas como redomas, habitados por pessoas que ficam indiferentes ao mundo externo. Quando ando de bike e encontro outros ciclistas (que se multiplicam dia a dia), percebo a cumplicidade no olhar e na atitude. Sinto o vento soprando instantes de liberdade. Quando ando de carro, eu não vejo pessoas. Eu vejo carros, placas, semáforos e muita poluição. Quando ando de carro eu não conheço a cidade, só presto atenção no trânsito caótico pra não bater. Andando de bike eu me sinto livre: vejo casas e pessoas, árvores, plantas e flores. Eu vejo vida. Vem pedalar, também!

Esse artigo foi publicado no Caderno Especial "Vá de Bike" do Jornal Metas, de Gaspar. O caderno também traz um desafio intermodal (carro e bike), dá dicas de bike, conta um pouco da história das rodas de bicicleta, fala sobre o ativismo junto à ABC Ciclovias, entre outras matérias. Para acessá-lo na íntegra, seguem os links: 
http://www.adjorisc.com.br/jornais/jornalmetas/especiais/va-de-bike 
http://jornalmetas.com.br/bike/pdf.pdf

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Visita ao prefeito

(crônica de autoria do ciclista e colega 
advogado André Jenichen)

Foto: Marcelo Martins (www.blumenau.sc.gov.br)
Curiosamente, hoje de manhã eu acordei mais cedo do que o habitual. E como estava adiantado no horário, resolvi aproveitar o tempo para fazer uma visita de cortesia ao prefeito. Chegando ao paço municipal, fui atendido de imediato, e com enorme simpatia. Aproveitei para questionar-lhe sobre a campanha, como foi sua eleição e, principalmente, quais foram suas propostas e promessas durante a disputa eleitoral. Percebi que o sorriso do prefeito sumiu logo após minhas perguntas. Na verdade, ele ficou atônito com as indagações. Mas, como bom orador que é logo se recuperou do susto e prosseguiu o discurso. O chefe maior da cidade disse-me: meu caro amigo, - sim, somos amigos, imagino eu! -, eu não fiz promessa alguma durante a campanha. Não precisei deste expediente. Como assim, prefeito? Agora quem não está entendendo nada sou eu, amigo prefeito. Em pleno embate político, o senhor não prometeu nada, nenhuma obra, nenhum feito extraordinário? Como isto é possível? Como se elegeu, então? Percebendo, ele, o meu assombro diante de sua resposta, nosso querido prefeito prosseguiu: André, sente-se aqui, eu vou lhe explicar!

Estávamos no salão nobre da prefeitura municipal. Ao nosso lado, havia uma estante de onde o senhor prefeito retirou um belíssimo livro. Postando-o sobre a mesa, o prefeito prosseguiu. Em nossa cidade, André, não precisamos prometer nada para nos elegermos. E continuou. Aqui nós temos este magnífica obra – o livro [uma espécie de plano diretor da cidade] -, que foi esquematizado há muitas décadas. Neste verdadeiro manual, constam todas as informações e recomendações que devemos seguir. Abrindo o livro, ele passou aos exemplos: hoje, nossa cidade tem aproximadamente 350 mil habitantes. Quando chegar nos 370 mil, eu já deverei ter concluído as obras de mais 3 creches, 2 postos de saúde e 1 escola no bairro “x”, pois, de acordo com o planejamento urbano, para lá será o crescimento da cidade. Mas não é só, continuando sua oratória: chegando aos 400 mil habitantes, o crescimento ordenado e planejado da cidade me diz que deverão estar prontos o novo hospital no bairro “y”, e a ampliação da escola municipal “z”, além da implantação dos corredores de ônibus e ciclovias, a fim de garantir a mobilidade urbana, de qualidade e com toda a segurança possível.  Ah, e por força do que está escrito neste manual, deverei ter concluído mais duas praças públicas para assegurar locais seguros e de lazer aos munícipes. No mais, devo manter em funcionamento a cidade. Garantir a assistência às famílias, escolas, postos de saúde, etc. Percebe, agora, por que não prometi nada, nenhuma obra extravagante? Basta o compromisso de seguir os projetos já executados. Dar continuidade ao planejamento da cidade. Sem margem para ciúmes ou picuinhas políticas. E isto é sinônimo de economia ao erário e de tempo, além de conferir segurança jurídica aos munícipes, empresários e futuros empreendedores. Brilhante! Fantástico! Estava prestes a cumprimentar o prefeito quando, de súbito, meu despertador soou. Acordei. Para minha decepção, tudo não havia passado de um sonho. Mas, como diria nosso poeta maior “menor do que meu sonho eu não posso ser”. Em tempo: para os que pensam que isto seria utopia, não é não! Incontáveis cidades espalhadas pelo mundo afora são administradas desta forma, principalmente, cidades alemãs!!

André Jenichen


sexta-feira, 11 de outubro de 2013

O terrorismo de Estado e a reinvenção do AI 5


Por Sally Satler, advogada e
procuradora municipal


Há um passado que não passa, que se renova e se desdobra como farsa, sempre, e caricaturalmente agora. (Adriano Pilatti, jurista e professor, sobre a edição de normas repressivas para justificar o autoritarismo estatal nos manifestos).


Alguns textos/editoriais de jornais como “O Globo”[1] (que apoiou a ditadura e por esses tempos pediu desculpas como estratégia de marketing) e alguns jornais locais, afiliados a mesma rede, não poderiam ter outro assunto esse mês que não fosse a defesa de atos e normas autoritárias contra o ‘vandalismo’ dos manifestantes de rua. A retórica utilizada por esses meios de comunicação chega a ser vergonhosa, com títulos como “Reação ao Vandalismo”[2], omitindo descaradamente que a reação, de fato autodefesa, parte dos manifestantes logo após a violência e truculência iniciada por policiais.

Não bastasse o disparate da polícia usar a lei de segurança nacional[3] (criada sob os auspícios da ditadura militar) para justificar as recentes e arbitrárias prisões de manifestantes[4], encontra-se tramitando em regime acelerado no Congresso Nacional o Projeto de Lei 728/2011, que define, entre outros, o crime de terrorismo durante a Copa do Mundo. Fazendo uma breve leitura do Projeto, não há dúvidas que a redação genérica abre possibilidades de criminalização também dos movimentos sociais. Diversas expressões contidas no art. 4º, como “provocar ou infundir terror ou pânico generalizado”, “por motivo ideológico, religioso, político” para definir o crime de terrorismo na copa, abre muitos espaços para sua aplicação.

Vejamos, por exemplo, a interferência midiática em manifestos: se a mídia passa a disseminar o medo, causando apreensão e pânico, será fácil qualificar um manifestante como terrorista. Além disso, a não exclusão expressa das manifestações de movimentos sociais como ato de terrorismo coloca em perigo toda a luta democrática no Brasil. Outro exemplo foi a recente manifestação dos professores da rede municipal do Rio de Janeiro, que começou pacífica e terminou com confrontos e depredações, causados especialmente pelo abuso da força policial. Isso tudo, somado à impunidade desses abusos, dá um alvará para que o policial se sinta livre para agredir gratuitamente os manifestantes e ainda puni-los com o rigor da lei (lembram quando um capitão da PM disse que tinha jogado gás de pimenta porque quis em um manifestante?). A pena prevista para o crime de ‘terrorismo’ na copa é de 15 a 30 anos de reclusão e, se for praticado contra coisa (bens), a reclusão é de 8 a 20 anos, superando até o crime de homicídio previsto no Código Penal, de 6 a 20 anos.

PM mostra cassetete e faz menção debochada a 
professores manifestantes: “Foi mal fessor!”
(Foto: Reprodução / Facebook / Tiago Tiroteio)

Por que isso não nos surpreende? Em recente palestra no Fórum Permanente de Direitos Humanos no RJ, o professor Adriano Pilatti fez os seguintes questionamentos: “Por que temos tanta facilidade em defender caixas eletrônicos e temos uma grande dificuldade de olhar para um barraco e ver ali a propriedade inviolável? Por que é que se pode remover centenas, riscar comunidades do mapa, pra fazer negócio e nada acontece? Porque a vida, a dignidade humana vale menos que o capital voraz de empreendimentos imobiliários ou um evento de copa do mundo?” [5]

Não há dúvidas que esse projeto de lei possui claramente pretensões intimidatórias e de silenciamento, tal como num regime de exceção, lembrando muito o famigerado Ato Institucional no. 5. E é nossa obrigação lutar contra a sua aprovação: pelo direito de manifestar-se, pelo direito de expressão e de locomoção. Pelo direito de lutar.




[1] Jornal O Globo (10/10/2013): ‘Secretário quer proibir que detidos por vandalismo voltem a atos em SP’: http://oglobo.globo.com/pais/noblat/posts/2013/10/10/secretario-quer-proibir-que-detidos-por-vandalismo-voltem-atos-em-sp-511595.asp

[2]Jornal de Santa Catarina (10/10/2013): ‘Reação ao vandalismo’: http://www.clicrbs.com.br/jsc/sc/impressa/4,185,4295755,22922

[3] Segundo o jurista Dalmo Dallari, a lei de segurança nacional só poderia ser usada em três situações: quando expõe a perigo a integridade territorial e a soberania nacional, o regime democrático ou quando atinge os chefes dos Poderes da União; e em nenhum desses casos os manifestantes se enquadram.

[4] Inúmeras prisões já foram efetuadas com base na lei de segurança nacional. Segundo a Rádio Band News FM, na madrugada do dia 11/10/2013 houve uma força-tarefa para efetuar prisões políticas em casas de manifestantes e de participantes de movimentos sociais no Rio de Janeiro. Para saber mais, acesse a nota pública divulgada pelo Coletivo Mariachi, no facebook, assinada por diversas organizações e movimentos sociais: http://www.facebook.com/coletivomariachi/posts/315936528546205:0

[5] Em palestra proferida no Fórum Permanente de Direitos Humanos-- EMERJ - 26-9-2013: “Direito à Manifestação, Democracia e Garantias Constitucionais”. Acesse: http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=b_PsRlhJe8Q


* Esse artigo foi publicado no Portal Desacato, de Florianópolis.

domingo, 6 de outubro de 2013

Ruas livres, corpos livres

Faz alguns anos que Blumenau já não possui mais aquela aura de prazer e tranqüilidade quando caminhamos pelas ruas centrais e de bairros próximos. O barulho do trânsito, buzinas e sirenes, a poluição tomando conta, a invasão da publicidade, a impaciência dos motoristas, a violência, estão minando, pouco a pouco, a convivência das pessoas nas ruas e passeios públicos, que passaram a se enclausurar em shoppings e centros comerciais.

A ideia dos arquitetos contemporâneos de que a arquitetura poderia modificar a sociedade parece ter se tornado utopia, eis que suas proposições são constantemente ignoradas e rechaçadas pelo poder econômico (leia-se: mercado imobiliário) e político. Henri-Pierre Jeudy e Paola Jacques, no livro ‘Corpos e cenários urbanos’ ilustram bem a situação ao afirmarem que “As cidades, no contexto de um mercado globalizado, assim transformadas sobretudo devido ao turismo, tornaram-se imagens espetaculares, outdoors, imagens sem corpos, espaços desencarnados, simples cenários”.

Toda essa transformação acabou por distanciar as pessoas, a convivência nas ruas já não é algo comum. Não vemos mais crianças jogando bola, soltando pipa, brincando de esconde-esconde, ou pessoas sentadas em suas varandas observando e conversando, nem mesmo a vizinha fofoqueira na janela flagramos mais! As ruas, mais vazias de pessoas e cheias de máquinas e asfalto, viraram sinônimo de medo: o medo de ser atropelado e o medo de ser assaltado são rotinas também em Blumenau.

Mas o que podemos fazer? Daniela Brasil, no livro “Os espaços públicos nas políticas urbanas”, nos dá algum sinal: “Se pensarmos que as cidades são materiais e imateriais, que são feitas de situações, encontros e práticas, atuar e interferir em espaços vividos pode ser mais efetivo do que desenhar e planejar espaços físicos”. Por isso, ela nos propõe uma apologia ao micro-urbanismo e aos pequenos gestos cotidianos, não sendo necessário “esperar por reuniões intermináveis, decisões excludentes e financiamentos astronômicos, passíveis de desvios e negociações corruptíveis.” Pequenos gestos e ações abrem possibilidades e criam novos espaços.

Em Blumenau também é possível criar espaços de convivência sem depender exclusivamente do poder público. Uma ação, barata e simples, seria iniciar na rua Curt Hering (dos correios) uma feirinha aos domingos com sebos e brechós, propondo a troca de objetos e incentivando a abertura dos cafés já instalados ali. O jornalista Leo Laps me confidenciou e imaginou a possibilidade de encontros aos domingos para trocas de discos e livros, com músicos divulgando seus trabalhos. Quem sabe outras trupes também se encorajam e ocupam o espaço para partilhar sua arte! E em quantas outras ruas, nos demais bairros, isso é possível fazer? Vizinhos podem se reunir e repensar o espaço de convivência no seu bairro, sem precisar esperar pelo poder público.


Brique da Redenção - Porto Alegre

Brique da Redenção - Porto Alegre

Precisamos reocupar as ruas, torná-las novamente um espaço de prazer, convivência e lazer. Com o tempo e a demanda criada, talvez a Prefeitura finalmente consiga perceber a necessidade de fechar permanentemente uma rua como a Curt Hering, tornando-a um passeio público convidativo para as pessoas.

Afinal, não precisamos de corpos de bronze e estátuas de cimento frias, espalhadas pela cidade. Precisamos é de corpos humanos nas ruas, verdadeiramente vivos, e quem sabe por alguns instantes, livres!


Rua Curt Hering, em Blumenau
  

Feirinha de San Telmo - Buenos Aires


* Esse artigo foi publicado no Portal Desacato, de Florianópolis e no Portal Blumenews, de Blumenau.