quarta-feira, 1 de maio de 2013

Essas bandidas das ideias!


Chegamos eu e Carla na casa de Elza Lobo, exatamente no horário combinado. Era um sábado de outono, 10 horas da manhã, com um céu azul surpreendente, ainda mais para São Paulo. A recepção foi com um cafezinho, servido numa antiga mesa de madeira, no quintal com jardim de inverno da casa que vive desde os 7 anos de idade. Lá ficamos, cercadas de plantas, pássaros e muitas lembranças dos países que percorreu durante o exílio.

Foto: Sally Satler

Elza é uma daquelas mulheres guerreiras, sobreviventes do regime militar, presa política entre os anos de 1969-1971, mas que continua lutando e resistindo, agora para a história não se apagar. Entre tantas memórias, ela nos contou algumas de suas ações no DEOPS - Departamento de Ordem Política e Social e também no presídio Tiradentes, mais precisamente na ‘Torre das Donzelas’, onde as mulheres presas políticas ficavam. 


Como a maioria não tinha dinheiro pra pagar advogados, nem pra ajudar os familiares que estavam lá fora, elas se organizaram. Nos dias de visita, entregavam listas de materiais aos parentes para que elas pudessem ter os apetrechos pra fazer coletes, blusas e cachecóis. No início foi bem difícil, pois os militares suspeitaram que os números contidos nas linhas, que só identificavam as cores, poderiam ser códigos para levar informações a quem estava fora, militando contra o regime.

Mas as costuras foram rendendo frutos, formando uma rede de solidariedade também fora do presídio. Uma mulher, sensibilizada pela causa, alugou uma sala da Rua Augusta, a mais famosa de São Paulo na época, para que pudesse vender as roupas vindas do presídio. Uma das presas chegou a fazer um véu de crochê para deixar na loja, que foi comprado por uma noiva que casou na igreja da Candelária, no Rio de Janeiro. Elza nos confidencia que até hoje a noiva não sabe que o véu foi feito na Torre das Donzelas.

Também conseguiram, após muita insistência, convencer a direção do presídio em deixá-las cozinhar a própria comida, eis que a oferecida era impossível de comer (era muito ruim e servida em um latão, daqueles que assamos carne, que era uma maneira a mais de humilhar os presos políticos). Revezavam-se diariamente para cozinhar numa espiriteira os alimentos trazidos pelos familiares, tudo adquirido com o dinheiro das roupas vendidas.

Elza também lembrou de uma médica presidiária que estava grávida, sofrendo a tortura do medo de ter seu filho na prisão. Para acolhê-la e acalmá-la, organizou uma lista do que seria preciso para realizar o parto e também roupas, fraldas e mantos para o bebê. Essa lista iria para os familiares, que aos poucos trariam o necessário nos dias de visita. A médica conseguiu sair um mês antes do parto, mas nunca se esqueceu do gesto que lhe trouxe alento, sempre lembrado por ela quando as duas se reencontram ao acaso.

A nossa conversa durou até às 17 horas. E no dia seguinte, ela fez questão de convidar e nos levar pessoalmente ao extinto DEOPS, que agora abriga o Memorial da Resistência, feito com sua participação. No local foram reconstituídas duas celas, e nas paredes estão gravadas frases, poemas e nomes de alguns dos presos. Ali é possível ouvir depoimentos de ex-presos políticos, inclusive de Elza, muitos deles carregados de sentimentos de solidariedade e delicadeza, apesar de remeterem a situações de horror. O silêncio e uma certa tensão do local são amenizados pelo som da música na sala ao lado “O Bêbado e a Equilibrista”, na voz Elis Regina, considerada o hino da anistia.

Crédito da imagem: http://40em40.blogspot.com.br

Bem no centro de uma das celas, em cima de um caixote, olhamos para um cravo vermelho, que repousa numa garrafa de vidro. Elza nos conta que num dos natais que passou na prisão, pediu à sua mãe que lhe trouxesse alguns ramalhetes de flores. Encerrado o horário de visitas e antes que voltasse à cela, ela passou por todas as celas pra entregar cravos vermelhos aos presos políticos - mulheres e homens detidos ali no DEOPS. Também lembra que quando um deles era libertado, os demais cantavam em alta voz a música ‘Suíte do Pescador’, de Dorival Caymmi.



Essas ações de resistência surpreendiam até mesmo os guardas do presídio: “Ah, essas bandidas das ideias!”. Sim, lá dentro, mesmo depois de tantas torturas e vidas ceifadas, elas continuaram lutando e resistindo, acreditando que era possível ser humano em meio a tanto terror. Sim, isso só nos mostra como faltam ‘bandidos’ e ‘bandidas’ das ideias nos dias de hoje, pra tantas dores, injustiças, preconceitos e atrocidades que aí estão. E Elza é o exemplo vivo de que é possível e importante lutar e resistir. Sempre!

Elza Lobo, saindo do extinto Dops.
Foto: Sally Satler
  Minha jangada vai sair pro mar
Vou trabalhar, meu bem querer
 Se Deus quiser quando eu voltar do mar
 Um peixe bom eu vou trazer
Meus companheiros também vão voltar
 E a Deus do céu vamos agradecer
Adeus, adeus
 Pescador não se esqueça de mim
 Vou rezar pra ter bom tempo, meu bem
 Pra não ter tempo ruim
Vou fazer sua caminha macia
 Perfumada com alecrim
(Suíte do Pescador, de Dorival Caymmi)



* Esse artigo foi publicado no Portal Blumenews, de Blumenau.

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