Outros textos, outros autores


Discurso de abertura do escritor Luiz Rufatto 
na Feira de Frankfurt, em outubro de 2013:

Divulgação: escritor Luiz Ruffato

"O que significa ser escritor num país situado na periferia do mundo, um lugar onde o termo capitalismo selvagem definitivamente não é uma metáfora? Para mim, escrever é compromisso. Não há como renunciar ao fato de habitar os limiares do século 21, de escrever em português, de viver em um território chamado Brasil. Fala-se em globalização, mas as fronteiras caíram para as mercadorias, não para o trânsito das pessoas. Proclamar nossa singularidade é uma forma de resistir à tentativa autoritária de aplainar as diferenças.

O maior dilema do ser humano em todos os tempos tem sido exatamente esse, o de lidar com a dicotomia eu-outro. Porque, embora a afirmação de nossa subjetividade se verifique através do reconhecimento do outro --é a alteridade que nos confere o sentido de existir--, o outro é também aquele que pode nos aniquilar... E se a Humanidade se edifica neste movimento pendular entre agregação e dispersão, a história do Brasil vem sendo alicerçada quase que exclusivamente na negação explícita do outro, por meio da violência e da indiferença.

Nascemos sob a égide do genocídio. Dos quatro milhões de índios que existiam em 1500, restam hoje cerca de 900 mil, parte deles vivendo em condições miseráveis em assentamentos de beira de estrada ou até mesmo em favelas nas grandes cidades. Avoca-se sempre, como signo da tolerância nacional, a chamada democracia racial brasileira, mito corrente de que não teria havido dizimação, mas assimilação dos autóctones. Esse eufemismo, no entanto, serve apenas para acobertar um fato indiscutível: se nossa população é mestiça, deve-se ao cruzamento de homens europeus com mulheres indígenas ou africanas - ou seja, a assimilação se deu através do estupro das nativas e negras pelos colonizadores brancos.

Até meados do século XIX, cinco milhões de africanos negros foram aprisionados e levados à força para o Brasil. Quando, em 1888, foi abolida a escravatura, não houve qualquer esforço no sentido de possibilitar condições dignas aos ex-cativos. Assim, até hoje, 125 anos depois, a grande maioria dos afrodescendentes continua confinada à base da pirâmide social: raramente são vistos entre médicos, dentistas, advogados, engenheiros, executivos, artistas plásticos, cineastas, jornalistas, escritores.

Invisível, acuada por baixos salários e destituída das prerrogativas primárias da cidadania --moradia, transporte, lazer, educação e saúde de qualidade--, a maior parte dos brasileiros sempre foi peça descartável na engrenagem que movimenta a economia: 75% de toda a riqueza encontra-se nas mãos de 10% da população branca e apenas 46 mil pessoas possuem metade das terras do país. Historicamente habituados a termos apenas deveres, nunca direitos, sucumbimos numa estranha sensação de não pertencimento: no Brasil, o que é de todos não é de ninguém...

Convivendo com uma terrível sensação de impunidade, já que a cadeia só funciona para quem não tem dinheiro para pagar bons advogados, a intolerância emerge. Aquele que, no desamparo de uma vida à margem, não tem o estatuto de ser humano reconhecido pela sociedade, reage com relação ao outro recusando-lhe também esse estatuto. Como não enxergamos o outro, o outro não nos vê. E assim acumulamos nossos ódios --o semelhante torna-se o inimigo.

A taxa de homicídios no Brasil chega a 20 assassinatos por grupo de 100 mil habitantes, o que equivale a 37 mil pessoas mortas por ano, número três vezes maior que a média mundial. E quem mais está exposto à violência não são os ricos que se enclausuram atrás dos muros altos de condomínios fechados, protegidos por cercas elétricas, segurança privada e vigilância eletrônica, mas os pobres confinados em favelas e bairros de periferia, à mercê de narcotraficantes e policiais corruptos.

Machistas, ocupamos o vergonhoso sétimo lugar entre os países com maior número de vítimas de violência doméstica, com um saldo, na última década, de 45 mil mulheres assassinadas. Covardes, em 2012 acumulamos mais de 120 mil denúncias de maus-tratos contra crianças e adolescentes. E é sabido que, tanto em relação às mulheres quanto às crianças e adolescentes, esses números são sempre subestimados. Hipócritas, os casos de intolerância em relação à orientação sexual revelam, exemplarmente, a nossa natureza. O local onde se realiza a mais importante parada gay do mundo, que chega a reunir mais de três milhões de participantes, a Avenida Paulista, em São Paulo, é o mesmo que concentra o maior número de ataques homofóbicos da cidade.

E aqui tocamos num ponto nevrálgico: não é coincidência que a população carcerária brasileira, cerca de 550 mil pessoas, seja formada primordialmente por jovens entre 18 e 34 anos, pobres, negros e com baixa instrução. O sistema de ensino vem sendo ao longo da história um dos mecanismos mais eficazes de manutenção do abismo entre ricos e pobres. Ocupamos os últimos lugares no ranking que avalia o desempenho escolar no mundo: cerca de 9% da população permanece analfabeta e 20% são classificados como analfabetos funcionais - ou seja, um em cada três brasileiros adultos não tem capacidade de ler e interpretar os textos mais simples.

A perpetuação da ignorância como instrumento de dominação, marca registrada da elite que permaneceu no poder até muito recentemente, pode ser mensurada. O mercado editorial brasileiro movimenta anualmente em torno de 2,2 bilhões de dólares, sendo que 35% deste total representam compras pelo governo federal, destinadas a alimentar bibliotecas públicas e escolares. No entanto, continuamos lendo pouco, em média menos de quatro títulos por ano, e no país inteiro há somente uma livraria para cada 63 mil habitantes, ainda assim concentradas nas capitais e grandes cidades do interior.

Mas, temos avançado.

A maior vitória da minha geração foi o restabelecimento da democracia - são 28 anos ininterruptos, pouco, é verdade, mas trata-se do período mais extenso de vigência do estado de direito em toda a história do Brasil. Com a estabilidade política e econômica, vimos acumulando conquistas sociais desde o fim da ditadura militar, sendo a mais significativa, sem dúvida alguma, a expressiva diminuição da miséria: um número impressionante de 42 milhões de pessoas ascenderam socialmente na última década. Inegável, ainda, a importância da implementação de mecanismos de transferência de renda, como as bolsas-família, ou de inclusão, como as cotas raciais para ingresso nas universidades públicas.

Infelizmente, no entanto, apesar de todos os esforços, é imenso o peso do nosso legado de 500 anos de desmandos. Continuamos a ser um país onde moradia, educação, saúde, cultura e lazer não são direitos de todos, e sim privilégios de alguns. Em que a faculdade de ir e vir, a qualquer tempo e a qualquer hora, não pode ser exercida, porque faltam condições de segurança pública. Em que mesmo a necessidade de trabalhar, em troca de um salário mínimo equivalente a cerca de 300 dólares mensais, esbarra em dificuldades elementares como a falta de transporte adequado. Em que o respeito ao meio-ambiente inexiste. Em que nos acostumamos todos a burlar as leis.

Nós somos um país paradoxal.

Ora o Brasil surge como uma região exótica, de praias paradisíacas, florestas edênicas, carnaval, capoeira e futebol; ora como um lugar execrável, de violência urbana, exploração da prostituição infantil, desrespeito aos direitos humanos e desdém pela natureza. Ora festejado como um dos países mais bem preparados para ocupar o lugar de protagonista no mundo --amplos recursos naturais, agricultura, pecuária e indústria diversificadas, enorme potencial de crescimento de produção e consumo; ora destinado a um eterno papel acessório, de fornecedor de matéria-prima e produtos fabricados com mão de obra barata, por falta de competência para gerir a própria riqueza.

Agora, somos a sétima economia do planeta. E permanecemos em terceiro lugar entre os mais desiguais entre todos...

Volto, então, à pergunta inicial: o que significa habitar essa região situada na periferia do mundo, escrever em português para leitores quase inexistentes, lutar, enfim, todos os dias, para construir, em meio a adversidades, um sentido para a vida?

Eu acredito, talvez até ingenuamente, no papel transformador da literatura. Filho de uma lavadeira analfabeta e um pipoqueiro semianalfabeto, eu mesmo pipoqueiro, caixeiro de botequim, balconista de armarinho, operário têxtil, torneiro-mecânico, gerente de lanchonete, tive meu destino modificado pelo contato, embora fortuito, com os livros. E se a leitura de um livro pode alterar o rumo da vida de uma pessoa, e sendo a sociedade feita de pessoas, então a literatura pode mudar a sociedade. Em nossos tempos, de exacerbado apego ao narcisismo e extremado culto ao individualismo, aquele que nos é estranho, e que por isso deveria nos despertar o fascínio pelo reconhecimento mútuo, mais que nunca tem sido visto como o que nos ameaça. Voltamos as costas ao outro --seja ele o imigrante, o pobre, o negro, o indígena, a mulher, o homossexual - como tentativa de nos preservar, esquecendo que assim implodimos a nossa própria condição de existir. Sucumbimos à solidão e ao egoísmo e nos negamos a nós mesmos. Para me contrapor a isso escrevo: quero afetar o leitor, modificá-lo, para transformar o mundo. Trata-se de uma utopia, eu sei, mas me alimento de utopias. Porque penso que o destino último de todo ser humano deveria ser unicamente esse, o de alcançar a felicidade na Terra. Aqui e agora."



*********************************************


Jovens vão às ruas e nos mostram que desaprendemos a sonhar

Por Andre Borges Lopes

O fundamental não é lutar pelo direito de fumar maconha em paz na sala da sua casa. O fundamental não é o direito de andar vestida como uma vadia sem ser agredida por machos boçais que acham que têm esse direito porque você está "disponível". O fundamental não é garantir a opção de um aborto assistido para as mulheres que foram vítimas de estupro ou que correm risco de vida. O fundamental não é impedir que a internação compulsória de usuários de drogas se transforme em ferramenta de uma política de higienismo social e eliminação estética do que enfeia a cidade. O fundamental não é lutar contra a venda da pena de morte e da redução da maioridade penal como soluções finais para a violência. O fundamental não é esculachar os torturadores impunes da ditadura. O fundamental não é garantir aos indígenas remanescentes o direito à demarcação das suas reservas de terras. O fundamental não é o aumento de 20 centavos num transporte público que fica a cada dia mais lotado e precário.

O fundamental é que estamos vivendo uma brutal ofensiva do pensamento conservador, que coloca em risco muitas décadas de conquistas civilizatórias da sociedade brasileira.

O fundamental é que sob o manto protetor do "crescimento com redução das desigualdades" fermenta um modelo social que reproduz – agora em escala socialmente ampliada – o que há de pior na sociedade de consumo, individualista ao extremo, competitiva, ostentatória e sem nenhum espaço para a solidariedade.

O fundamental é que a modesta redução da nossa brutal desigualdade social ainda não veio acompanhada por uma esperada redução da violência e da criminalidade, muito pelo contrário. E não há projeto nacional de combate à violência que fuja do discurso meramente repressivo ou da elegia à truculência policial.

O fundamental é que a democratização do acesso ao ensino básico e à universidade por vezes deixam de ser um instrumento de iluminação e arejamento dos indivíduos e da própria sociedade, e são reduzidos a uma promessa de escada para a ascensão social via títulos e diplomas, ao som de sertanejo universitário.

O fundamental é que os políticos e grandes partidos antigamente ditos "libertários" e "de esquerda" hoje abriram mão de disputar ideologicamente os corações e mentes dos jovens e dos novos "incluídos sociais" e se contentam em garantir a fidelidade dos seus votos nas urnas, a cada dois anos.

O fundamental é que os políticos e grandes partidos antigamente ditos "sociais-democratas" já não tem nada a oferecer à juventude além de um neo-udenismo moralista que flerta desavergonhadamente com o autoritarismo e o fascismo mais desbragados.
O fundamental é que a promessa da militância verde e ecológica vai aos poucos rendendo-se aos balcões de negócio da velha política partidária ou ao marketing politicamente correto das grandes corporações.

O fundamental é que os sindicatos, movimentos populares e organizações estudantis estão entregues a um processo de burocratização, aparelhamento e defesa de interesses paroquiais que os torna refratários a uma participação dinâmica, entusiasmada e libertária.

O fundamental é que temos em São Paulo um governo estadual que é francamente conservador e repressivo, ao lado de um governo federal que é supostamente "progressista de coalizão". Mas entre a causa da liberação da maconha e defesa da internação compulsória, ambos escolhem a internação. Entre as prostitutas e a hipocrisia, ambos ficam com a hipocrisia. Entre os índios e os agronegócio, ambos aliam-se aos ruralistas. Entre a velha imprensa embolorada e a efervescência libertária da Internet, ambos namoram com a velha mídia. Entre o estado laico e os votos da bancada evangélica, ambos contemporizam com o Malafaia. Entre Jean Willys e Feliciano, ambos ficam em cima do muro, calculando quem pode lhes render mais votos.

O fundamental é que o temor covarde em expor à luz os crimes e julgar os aqueles agentes de estado que torturaram e mataram durante da ditadura acabou conferindo legitimidade a auto-anistia imposta pelos militares, muitos dos quais hoje se orgulham publicamente dos seus crimes bárbaros – o que nos leva a crer que voltarão a cometê-los se lhes for dada nova oportunidade.

O fundamental é que vivemos numa sociedade que (para usar dois termos anacrônicos) vai ficando cada vez mais bunda-mole e careta. Assustadoramente careta na política, nos costumes e nas liberdades individuais se comparada com os sonhos libertários dos anos 1960, ou mesmo com as esperanças democráticas dos anos 1980. Vivemos uma grande ofensiva do coxismo: conservador nas ideias, conformado no dia-a-dia, revoltadinho no trânsito engarrafado e no teclado do Facebook.

O fundamental é que nenhum grupo político no poder ou fora dele tem hoje qualquer nível mínimo de interlocução com uma parte enorme da molecada – seja nas universidades ou nas periferias – que não se conforma com a falta de perspectivas minimamente interessantes dentro dessa sociedade cada vez mais bundona, careta e medíocre.

Os mesmos indignados que se esgoelam no mundo virtual clamando que a juventude e os estudantes "se levantem" contra o governo e a inação da sociedade, são os primeiros a pedir que a tropa de choque baixe a borracha nos "vagabundos" quando eles fecham a 23 de Maio e atrapalham o deslocamento dos seus SUVs rumo à happy-hour nos Jardins.

Acuados, os políticos "de esquerda" se horrorizam com as cenas de sacos de lixo pegando fogo no meio da rua e se apressam a condenar na TV os atos de "vandalismo", pois morrem de medo que essas fogueiras causem pavor em uma classe média cada vez mais conservadora e isso possa lhes custar preciosos votos na próxima eleição.

Enquanto isso a molecada, no seu saudável inconformismo, vai para as ruas defender – FUNDAMENTALMENTE – o seu direito de sonhar com um mundo diferente. Um mundo onde o ensino, os trens e os ônibus sejam de qualidade e gratuitos para quem deles precisa. Onde os cidadãos tenham autonomia de decidir sobre o que devem e o que não devem fumar ou beber. Onde os índios possam nos mostrar que existem outros modos de vida possíveis nesse planeta, fora da lógica do agribusiness e das safras recordes. Onde crenças e religião sejam assunto de foro íntimo, e não políticas de Estado. Onde cada um possa decidir livremente com quem prefere trepar, casar e compartilhar (ou não) a criação dos filhos. Onde o conceito de Democracia não se resuma à obrigação de digitar meia dúzia de números nas urnas eletrônicas a cada dois anos.

Sempre vai haver quem prefira como modelo de estudante exemplar aquele sujeito valoroso que trabalha na firma das 8 da manhã às 6 da tarde, pega sem reclamar o metrô lotado, encara mais quatro horas de aulas meia-boca numa sala cheia de alunos sonolentos em busca de um canudo de papel, volta para casa dos pais tarde da noite para jantar, dormir e sonhar com um cargo de gerente e um apartamento com varanda gourmet.

Não é meu caso. Não tenho nem sombra de dúvida de que prefiro esses inconformados que atrapalham o trânsito e jogam pedra na polícia. Ainda que eles nos pareçam filhinhos-de-papai, ingênuos em seus sonhos, utópicos em suas propostas, politicamente manobráveis em suas reivindicações, irresponsavelmente seduzidos pelos provocadores de sempre.

Desde a Antiguidade, esses jovens ingênuos e irresponsáveis são o sal da terra, a luz do sol que impede que a humanidade apodreça no bolor da mediocridade, na inércia do conformismo, na falta de sentido do consumismo ostentatório, nas milenares pilantragens travestidas de iluminação espiritual.



Esses moleques que tomam as ruas e dão a cara para bater incomodam porque quebram vidros, depredam ônibus e paralisam o trânsito. Mas incomodam muito mais porque nos obrigam a olhar para dentro das nossas próprias vidas e, nessa hora, descobrimos que desaprendemos a sonhar.


*********************************************************


Obrigado, Feliciano!

Publicado em 08/04/2013, por Eduardo d´Albergaria (Duda), Cientista Social, Especialista em Políticas Públicas (MPOG) e militante da Cia Revolucionária Triângulo Rosa (http://ciatriangulorosa.info/?p=329).

Há pelo menos 3 décadas, o fundamentalismo religioso vem ganhando espaço no Brasil de forma intensa e silenciosa. Conquistando lugares no parlamento, em cargos executivos, canais de televisão, os fundamentalistas transformaram suas empresas em verdadeiros impérios.

Atuam, sobretudo, nas periferias urbanas, praticamente abandonadas pela Igreja Católica, que até então promovia, nestas áreas, a Teologia da Libertação – isolada e perseguida pela Cúria Romana, que discordava de sua “opção pelos pobres” e pelo seu engajamento nas lutas por direitos.

 Os fundamentalistas encontraram terreno fértil para sua pregação: legiões de “sobrantes”, acossados pelo desemprego, pela invisibilidade, pelo terror da violência urbana e policial, ávidos por discursos messiânicos e salvacionistas. No meio da barbárie  e na ausência de projetos coletivos, só mesmo a fé se mostra como caminho de saída do desespero.

 Durante a ascensão do fundamentalismo religioso, uma marca sempre esteve presente nos discursos e pregações: a escolha de um inimigo a ser combatido. A velha estratégia de se criar um inimigo fora do grupo, para dar sentido a sua própria existência: uma “batalha espiritual” que divide o mundo entre o bem e o mal.

 As primeiras vítimas dos discursos de ódio do fundamentalismo religioso foram as religiões de matriz africana, depreciadas como “rituais macabros”, “manifestações demoníacas”. O(A)s seguidore(a)s do Candomblé e da Umbanda não contaram com a solidariedade da sociedade brasileira. Sozinho(a)s tiveram poucas condições para resistir ao verdadeiro linchamento público a que foram submetido(a)s. Desorganizad@s politicamente, minoritári@s na sociedade e subalternizad@s por um preconceito que, de tão avassalador , sequer se reconhece sua existência: o racismo.

 Essa fragilidade das religiões afro tem origem histórica.  Vítimas de uma abolição tutelada, os praticantes do candomblé e da umbanda tiveram, durante muito tempo, sua religiosidade considerada crime e só conseguiam manter abertos seus terreiros caso se  submetessem à proteção de um coronel que trocasse liberdade religiosa por votos.

Curiosamente, os mesmos fundamentalistas que os atacavam (e atacam) incorporam rituais em suas liturgias nos mesmos padrões das religiões de matriz africana. O que levou Vagner Gonçalves da Silva, professor de antropologia da USP, a afirmar: ”Combatem-se essas religiões [afro] para monopolizar seus principais bens no mercado religioso, as mediações mágicas e a experiência do transe religioso, transformando-os em valor interno do sistema neopentecostal.”

 Nos últimos anos, os fundamentalistas religiosos resolveram intensificar sua campanha contra outro “inimigo” : os sexodivers@s – gays, lésbicas, bissexuais, transexuais, travestis e todas as pessoas que vivem relações não procriativas (assim, também são rechaçados, em menor intensidade, os heterossexuais que realizam sexo anal e, em alguns casos, até o oral).

Utilizando-se de uma leitura biblica datada, os fundamentalistas controem um moralismo seletivo – não incorporam todas as proibições bíblicas: como, por exemplo, a de cortar o cabelo e a de comer frutos do mar …

Não à toa, os fundamentalistas escolheram este momento para intensificar seus ataques à comunidade sexodiversa: a governabilidade conservadora dos governos Lula/Dilma – que unificou, na mesma base de apoio, parlamentares “progressistas” e parlamentares fundamentalistas – fez com que muitos dos tradicionais aliados da diversidade sexual – parlamentares do PT, PC do B, PSB – se omitissem na disputa contra o fundamentalismo religioso, agora seu aliado na sustentação de governo. Resultado: deputados-pastores transformaram o plenário do Congresso e programas de TV em púlpitos de sua pregação de ódio e encontraram abandonado o cenário de disputa de valores. Some-se a isso que a resistência não tem vindo de fora do parlamento: o movimento LGBT hegemônico é hoje composto por ONGs que se encontram totalmente tragadas pela dependência ao Estado e reféns do Governismo.

Enquanto isso, a comunidade sexodiversa está totalmente domesticada pelo mercado Pink. A maior vitória do neoliberalismo sobre a comunidade sexodiversa foi consolidar a ideia de que “chique é consumir”, que se engajar numa causa social e refletir sobre o mundo são coisas “cafonas” ou “pagar mico”.

Na esteira do medo e da culpa, os fundamentalistas tentam abrir um novo e lucrativo mercado: o da cura pela “Psicologia Cristã”. Como as normas do Conselho Nacional de Psicologia não reconhecem esta “reorientação de desejo”, os fundamentalistas tentam agora, por meio de sua bancada no Congresso Nacional, fazer uma intervenção no Conselho de Psicologia para mudar as normas da profissão.

Nessa sucessão de “batalhas espirituais”, os fundamentalistas também miraram os povos indígenas. Ressuscitando a velha retórica “missionária” de um povo a ser salvo pela “palavra cristã”, construíram relações bastante complicadas com os povos indígenas. Chegaram até mesmo a propor, no Congresso Nacional, um projeto que estabelece a visão de que os povos indígenas são infanticidas (até postaram no youtube um filme falsamente documental). Não por acaso, simultaneamente, abriram um vasto mercado de captação de recursos financeiros explorando adoções de crianças indígenas e o desconhecimento por estrangeiros da  realidade dos nossos mais de 220 povos nativos.

Também os usuários de substâncias psicoativas  foram alvo do proselitismo dos fundamentalistas. Na esteira da falência da “guerra às drogas” e na ausência de uma política de educação e saúde mental que construa a autonomia dos sujeitos frente a estas substâncias, os fundamentalistas multiplicaram outro mercado lucrativo: o da cura pela conversão. Em todo o país, “comunidades terapêuticas” recebem recursos públicos para sustentarem seu proselitismo religioso junto aos dependentes químicos.

Mas por que os fundamentalistas escolheram as religiões afro, @s sexodivers@s e os povos indígenas como seus inimigos? Por que não escolheram a religião católica, ainda majoritária no país e com a qual eles disputam espaço?

Uma marca dos fundamentalistas é a covardia: eles só enfrentam inimigos muito mais frágeis que eles. Do total da população brasileira, 1,5% é de seguidores das religiões afro, 5 a 10%  se declaram homossexuais de %, e menos de 900 mil brasileir@s se declaram indígenas. Além de minoritários, esses grupos, têm sido historicamente estigmatizados e inferiorizados.

Certamente, tão cedo, não veremos uma Santa ser chutada novamente por um pastor fundamentalista, mas terreiros seguem sendo violados Brasil a fora sem que isso cause grandes comoções.

O caminho da ascensão fundamentalista vem sendo trilhado sem qualquer resistência: exploração da fé de um povo dilacerado; constituição de um moderno curral eleitoral – transformando Cristo em Cabo Eleitoral –; influência crescente no Parlamento e nos executivos; poder crescente no oligopólio brasileiro de informação; comunidades terapêuticas, empresas de shows, editoras, isenção de impostos…

Uma trajetória que dilacera, aos poucos, nosso nunca integralmente conquistado Estado Laico: leis que, de forma crescente, estabelecem os valores dos fundamentalistas como obrigatórios para o restante da sociedade, proselitismo religioso nas escolas públicas, transferência de dinheiro público para subsidiar comunidades terapêuticas, dinheiro público para marchas para “Jesus”, dinheiro público para parques gospel…

E a sociedade brasileira, passiva, assiste à ascensão do fundamentalismo.

Até que os fundamentalistas resolveram dar um passo “maior que suas pernas”: ter seu quadro político mais extremista como presidente da Comissão de Direitos Humanos.

Marco Feliciano é uma caricatura pesada demais para a sociedade brasileira. Além dos “tradicionais” ataques aos sexodivers@s, candomblecistas, umbandistas – que ele chegou até a pregar pelos “sepultamentos” –, o deputado-pastor vai além: ataca todos(as) os(as) negros(as) – classificando-os(as) como “amaldiçoados(as)” e resgatando teologia de tempos de apartheid – e as mulheres. que, e segundo ele, deveriam ser subalternizadas pelos homens.

O sectarismo de Feliciano alcança até mesmo os seguidores do catolicismo, que ele chamou de “religião morta e fajuta” e responsabilizou os católicos carismáticos pelo “avivamentos de satanás”. O deputado-pastor ainda vai mais longe:  na mercantilização da fé, promete milagres em troca de senhas de cartões de crédito e vende carnê da casa própria em plena sessão de transe espiritual. Faz uso de seu mandato público para fins privados: contrata pastores, produtores de vídeo e advogados para suas empresas. Demonstra total incapacidade para lidar com o debate democrático, já que, segundo ele, seus adversários seriam Satanás.

Feliciano é uma figura tão indefensável que seus pares (incluída a revista Veja), para protegê-lo, precisam construir as seguintes estratégias tangenciais, entre outras.

1 – Trasformam o debate em uma briga pessoal entre Jean Wyllys e Feliciano. Tod@s @s deputad@s historicamente comprometidos com os Direitos Humanos são contrários a que um homofóbico racista esteja à frente da Comissão de Direitos Humanos. Por que só personificar em Jean Wyllys? Novamente, a costumeira covardia dos fundamentalistas: eles sabem que ainda há muita rejeição na sociedade ao fato de um homossexual ocupar um cargo público.

2 – Afirmam que é uma perseguição aos cristãos. Não é verdade: é crescente o número de cristãos que dizem não a Marco Feliciano. Mais de 150 pastores e lideranças evangélicas assinaram um manifesto em que solicitam a substituição da presidência da Comissão de Direitos Humanos. Esse pedido também foi feito pela Comissão Justiça e Paz da Cnbb e pelo Conselho de Igrejas Cristãs – que congrega a Igreja Católica, Luterana, Presbiteriana, Metodista e Anglicana.

3 – Tentam deslegitimar os movimentos contra Feliciano dizendo que seria mais importante lutar contra Renan e os mensaleiros. Ora, em quem os senadores fundamentalistas votaram para ocupar a presidência do Senado? E, entre os mensaleiros, não estava um dos parlamentares fundamentalistas, Bispo Rodrigues? Portanto, não há sentido em se relativizar uma luta fundamental, ainda mais quando isso é proposto por alguém que não constrói luta cidadã alguma…

Temos muito a “agradecer” a Marco Feliciano por provocar o surgimento de um movimento amplo e plural em defesa do Estado Laico. A sociedade Brasileira parece ter percebido finalmente o risco do Fundamentalismo Religioso.

A disputa em curso é muito maior do que a de quem irá presidir uma Comissão do Congresso.

A luta para derrubar Marco Feliciano é a materialização do confronto entre as posições em defesa  do Estado Laico e o Fundamentalismo Religioso. O que está em jogo é a opinião da sociedade sobre as liberdades individuais e religiosas, sobre a laicidade do Estado e sobre o perigo fascista do fundamentalismo religioso.

Para derrotar o fundamentalismo, não podemos subestimar seu poder. Seus quadros políticos são preparados e exibem grande capacidade de oratória e convencimento. Mas também seria um erro superestimar sua força. Entendê-los como todo-poderosos que não podem ser derrotados, criaria um sentimento paralisante na sociedade, que pouco contribuiria para o enfrentamento.

Então é importante conhecer, entre outros, os seguintes pontos de fragilidade dos fundamentalistas.

1 – O debate sobre a imensa fortuna dos pastores (inclusive registrada pela revista “Forbes”) os deixa muito fragilizados:  não há “teologia da prosperidade” que explique que essa prosperidade só chegue para pastores, enquanto seus rebanhos seguem massacrados pelo capitalismo selvagem.

2 – Não é tão fácil quanto eles dizem mobilizar sua base social para uma disputa política aberta. Todas as vezes em que eles mobilizaram multidões foi em torno de temas religiosos mais gerais – as marchas são “para Jesus”, a rejeição ao PLC 122 entra como um tema “acessório”. Seu rebanho é composto de um público domesticado pelos poderes constituídos. Quem já o viu presente em um embate no Congresso sente dó daquelas pessoas que ficam acuadas por não entenderem plenamente o que está acontecendo. É verdade que, em tese, os fundamentalistas podem arrastar multidões para o embate público, mas seria uma manobra arriscada tirar essa gente dos currais do fundamentalismo e jogá-la no lugar do contraditório. Eles sabem que os argumentos deles só funcionam sem um contraponto de qualidade.

3 – Felizmente, eles ainda não têm um projeto de poder comum. Cada um tem seu próprio projeto de poder, e os projetos, muitas vezes, se chocam. Feliciano e outros estão jogando para nichos extremistas, ao passo que parlamentares fundamentalistas como Marcelo Crivela sonham em ocupar um cargo majoritário e, para isso, precisam ser mais “amplos”. Um acirramento de conflito, no patamar realizado por Feliciano, é ruim para os planos deles. E, mesmo dentro do mundo religioso, os fundamentalistas disputam territórios de forma bem pouco “elegante”: se hoje Malafaia e Feliciano se unem por senso de sobrevivência, até pouco tempo se matavam pelo controle da Assembleia de Deus.

Embora os fundamentalistas não compartilhem um projeto de poder, eles agem segundo uma lógica política comum, o que dá lastro a uma articulação importante dentro do parlamento e à aliança recente para defender Feliciano. O perigo é que eles tenham tanto poder daqui a alguns anos, que comecem a aventar um projeto de poder comum.

4 – Os fundamentalistas dependem dos evangélicos conservadores não sectários para terem legitimidade  ao falar em nome do “povo evangélico”. No entanto, as lideranças conservadoras não confiam nos propósitos dos mercadores da fé, que, por isso, não podem ir longe demais nos embates, sob o risco de ficarem isolados no próprio mundo evangélico.

5 – Dentro do movimento evangélico, há setores progressistas e inclusivos, hoje muito isolados, e que precisam ser mais visualizados para demonstrar à sociedade que existe sim evangélicos que não são intolerantes. 

É pensar essas contradições que dá caminhos mais firmes para o movimento pelo Estado Laico e contra Feliciano.

Dificilmente Feliciano sairá da presidência da Comissão. A não ser que se torne insuportável a pressão institucional crescente:  de seu partido; da Presidência da Câmara, que já se posicionou pela inviabilidade de Marco Feliciano continuar à frente da CDH; da Comissão de Ética, que, diante de uma representação do Psol, julgará o uso do mandato para fins privados.

Feliciano sabe muito bem que, a cada dia que ficar à frente da Comissão, ele ganhará mais votos de um eleitorado extremista.

Ainda que não seja fácil derrubar Feliciano, é fundamental que o movimento siga combativo: que, a cada dia, os jovens tomem os corredores do Congresso e digam: “Feliciano não nos representa”, que, a cada dia que a CDH se reunir a portas fechadas por incapacidade de sua atual direção de dialogar com os movimentos sociais, a cada dia que uma audiência se inviabilizar porque os convidados se negam a estar num espaço liderado por um fundamentalista, crescerá, na sociedade, a consciência do perigo do fundamentalismo religioso.

A cada dia que Feliciano fica à frente da Comissão, cresce a Frente pelo Estado Laico , que já envolve artistas, lideranças religiosas, movimentos sociais, parlamentares e milhares de ativistas nas ruas e nas redes. 

Por isso sigamos insistentes e persistentes ….o tempo que for necessário!

E sejamos “justos”: “Obrigado, Feliciano, pelo nosso fortalecimento para combater o fundamentalismo. Nunca estivemos tão fortes e unidos. Obrigado.


Nenhum comentário:

Postar um comentário